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E ainda me perguntam porque nunca me sento na relva do Parque Eduardo VII

por João Sousa, em 16.08.16

Parque Eduardo VII, saída do topo, cerca das três da tarde de quarta-feira da semana passada: um cavalheiro sexagenário, de natureza na mão, entregava-se ao alívio mictório de encontro a uma árvore. (Nem sequer se tratava de uma árvore particularmente frondosa, nem em localização particularmente discreta).

Eu não sei se isto é um traço comportamental do lusitano, ou se é transversal às civilizações dessa Europa fora. Um cronista algarvio escreveu há anos que, pela sua experiência, o estrangeiro, quando soam as sirenes da bexiga, "aguenta-se" até chegar às instalações apropriadas, enquanto o português entra num pânico imediato. Estaria correcto, ou iludido por uma estatística pouco representativa?

Eu não sei. O que sei, porque vi, é que às três da tarde de um dia de Agosto, um cavalheiro,  perante o alarme úrico, negligenciou uns WC públicos que distavam um minuto a pé, vários estabelecimentos de restauração com instalações disponíveis, um El Corte Inglés a menos de cinco minutos (já contando com o azar de todos os semáforos vermelhos), preferindo, indiferente aos gaiatos que jogavam à bola a umas dezenas de metros, aos transeuntes que passavam e aos automóveis que circulavam, soltar o regatozinho ali mesmo, em comunhão com as árvores e os passarinhos. Meses antes, vi outro cavalheiro libertar-se de encontro a uma esquina do Quartel de São Sebastião. Antes, outro que regava a parede atrás de um Mupi no Metro dos Anjos. E outros dois, porque onde urina um português urinam dois ou três, fizeram-no em acto comunitário num dos túneis de acesso à mesma estação. E com outro me deparei, há anos, que marcava a jante de uma pickup estacionada perto do Campo das Cebolas - às 17:45 de um dia de trabalho, indiferente às gentes que corriam para as estações dos barcos.

Ainda hoje questionei um inglês se esta urgência também grassa entre os súbditos de Sua Majestade. Ele não foi muito conclusivo, talvez por diplomacia de imigrante, mas mencionou a inexistência de uma rede alargada de WCs públicos. É verdade: nós não temos muitos lavabos públicos; temos, outrossim, muitos lavabos em locais públicos e ligados a actividades comerciais - e, por isso, às vezes sujeitos a um proteccionismo nem sempre irrazoável.

Mas bastará esta falta de instalações públicas para explicar a nossa pressa urinária? O cronista que supramencionei avançava outra explicação: a ditadura. O português, dizia, habituara-se a obedecer às figuras de autoridade: os sôtores, a Administração Pública, as forças militares e policiais. Portanto, quando a bexiga dava ordens, lá ia o português, rendido ao respeitinho, obedecer a sua senhoria.

Eu não concordo. E não concordo, desde logo, porque não acho o português obediente e respeitoso da ordem. Acho-o, pelo contrário, sonso como uma criança, dizendo que sim com a cabeça, de olhos baixos e mãos nos bolsos, mas fazendo o oposto quando ninguém está a ver e sente a mínima hipótese de impunidade. Na verdade, penso que a ditadura e subsequente democracia fizeram do lusitano uma criança rebelde: a urinadela fora do sítio funciona(va) como um acto de pequenina vingança contra o regrismo institucionalizado. A mijinha portuguesa transformou-se, assim, em tomada de posição.

Talvez o senhor de quarta-feira se descontraísse contra a árvore como censura à frequência com que os WCs do Parque são utilizados para necessidades físicas e não fisiológicas, à proliferação de grandes conglomerados comerciais que asfixiam o micro-comércio local, e como crítica a uma indústria de restauração que tarda a reflectir nos preços a baixa do respectivo IVA. O outro, desafogando-se na parede do quartel, insurgia-se contra toda a instituição militar. Os outros, no Metro, criticavam a falta de uma verdadeira política integrada de transportes públicos. E o outro, ao oxidar o pneu da pickup, apontava um dedo (e não só) acusador a uma sociedade condicionada para a ostentação.

Adenda (12:29 22/08/2016): um pequeno texto de agradecimentos.

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publicado às 15:16


1 comentário

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De nhaka a 19.08.2016 às 13:25

até parece que não há mulheres a fazer o mesmo à porta dos bares do bairro alto e cais do sodré ou atrás dos arbustos do principe real e outros jardins por exemplo às tantas da noite...

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