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até que esgotem
[Tindersticks - Dying Slowly]
Quanto mais envelheço, mais percebo que o Natal é, no fundo, apenas um dia com vinte e quatro horas que se sucede a uma véspera com vinte e quatro horas e prenuncia um 26 com outras vinte e quatro horas.
Dois amigalhaços almoçavam ruidosamente na mesa ao lado da minha. No meio da animada conversa, um deles sai-se com esta pérola de sabedoria:
- Sabes, o bom de um homem não ter cheta é saber que se uma mulher está com ele, é mesmo por ele. O mau de um homem não ter cheta é saber que as mulheres nunca querem estar com ele apenas por ele.
Estes dias de Setembro, quando as tardes já adormecem frescas, parecem-me agora o fim de algo. Não o fim de algo que aconteceu, nem sequer o fim de algo que poderia acontecer - apenas o fim de algo que nunca acontecerá.
Quando são oito e a escuridão já cobre as janelas, Setembro anuncia-me as longas noites em que é impossível fugir às memórias.
O filósofo bêbado, constante alvo de chacota, é com frequência apodado de falhado pelos companheiros. Estes, cheios de si próprios, olham para a História do falhado com a sobranceria dos vencedores. Enquanto acariciam, com ar de posse, a coxa da companheira, diagnosticam as derrotas do filósofo como resultado de má atitude, falta de coragem e inteligências semelhantes.
E, no entanto, o falhado é com frequência mais corajoso e digno do que qualquer um destes orgulhosos nietzschianos. Há muito mais valentia no eterno vencido que continua a ir às lutas sabendo que a derrota é, com certeza quase absoluta, aquilo que o aguarda.
Há uns dias, acompanhei a exposição que um bêbado fazia sobre O Amigo, essa instituição que costuma (a par, digo eu, d'A Amiga Feia* e d'O Amigo Gay) estar associada à Miúda Gira.
Os bares e as tascas, na altura em que os solitários - mesmo se, ou principalmente se(!), imersos num grupo - já estão inebriados o suficiente, são uma escola de filosofia. A filosofia dos bêbados, injustamente recebida com troça pelos seus companheiros e vizinhos, pode ser exposta em metáforas algo coloridas - mas isso não retira à sua correcção. É preciso ter consciência de que, bastas vezes, o bêbado não filosofa ao desbarato: aquilo que lhe sai, ora em lamentos chorosos, ora em acusações ressentidas, não são devaneios de ocasião mas, ao invés, ideias trabalhadas de há muito (os gozões chamam-lhe antes "ressabiadas") e, amiúde, apenas viram a luz do dia graças à desinibição etílica.
(*) Pedro Mexia já falou sobre A Amiga Feia (Nada De Melancolia, pg. 206) - mas não reconheceu, então, a existência dos outros. Reservo-me, portanto, a glória da descoberta.
Numa conversa de há um punhado de anos, eu disse não haver desculpa para as asneiras que estavam sendo cometidas. Em não sendo propositadas, elas só poderiam resultar da falta de cultura, pois ou já nos tinham sido contadas pela História, ou já tinham sido antecipadas pelas distopias da Literatura.
Releia-se Fahrenheit 451: Bradbury mostrou-nos, com décadas de avanço, a estultização do entretenimento, o emagrecimento da informação e a nivelação por baixo do ensino - e o tipo de "igualdade" que isso gerava.
Dizer que Ray Bradbury foi um grande escritor de ficção científica é redutor. Bradbury foi um grande escritor - ponto final.
A papelaria onde comprei os meus primeiros livros está hoje fechada, o vidro da montra tapado com jornais queimados pelo Sol. A azinhaga por onde regressávamos, não por ser o caminho mais curto, mas precisamente pelo contrário, já não tem razão para ser percorrida. Amores tornaram-se um nome da agenda com quem são trocadas mensagens de circunstância no Natal.
- Sente-se! - disse ele metendo o hóspede no coração com o tom açucarado. - Que vespa o mordeu? Os ares da casa não são bons, sei muito bem; mas o que quer? A gente toma amor ao ninho, e depois não há quem o despegue dele. Não tenho mulher, nem filhos; nasceu-me aqui o dente do siso, e... É melhor não tocar em cousas más. Mas sempre lhe digo que há noites! Ainda antes de ontem foi um reboliço lá por cima de cadeias arrastadas, de soluços e gemidos, que vinham os sobrados abaixo...
(in A Casa Dos Fantasmas)