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até que esgotem
[The Magnetic Fields - All My Little Words]
O dia de São Valentim, notei há pouco, será na próxima Quarta-feira. Amor e cinzas no mesmo dia: a ironia é quase demasiada para o entendimento.
"A blindagem dos cabos de coluna é efectuada com recurso a uma cobertura em alumínio e mylar e o dieléctrico é também de polietileno com a cobertura exterior de um elastómero termoplástico TPV."
[Áudio, nº 262, pg. 63]
Depois do almoço, Gregório afastou-se sozinho no tractor, passou pela aldeia, para comprar um maço de cigarros. Parou em frente do Bons Laboureurs, para não aborrecer a Ti' Couzenot que o estimava.
- Estou com sede.
- Se cá entraste, tenho a impressão de que não foi para varrer o chão - respondeu a Ti' Couzenot.
Trouxe um jarro de vinho e dois copos, porque ela não era das que desprezam a sua mercadoria.
- O que é que há de novo lá pelas Pédouilles?
- Não há assim lá grande coisa, a não ser que o visconde vai casar-se com Marie-Fraise.
- Ah, sim? - exclamou a Ti' Couzenot, que pouco depois precisou com muita vivacidade o seu pensamento: - Vai por aí haver em todo o concelho muita braguilha a rir-se!
- A sério? - perguntou Quatresous, revirando dois olhos que caíam das nuvens.
- Vê-se bem que acabas de sair de um mosteiro, e não de qualquer outra parte! - gracejou a boa mulher, contando pelos dedos: - O António Paquet, um, o Brás Chavon, dois, o Luisinho e o Joãozinho Poulouque, três e quatro, o Humberto Bretelle, cinco, o português da quinta de Chaume, seis, toda esta cambada se lhe deitou em cima, dessa lambisgóia da Marie-Fraise!
[René Fallet, O Contrabandista de Deus, 1973]
2017 será, pelo menos até este ano acabar, o pior ano de que tenho memória. Se alguém me desse um bilhete para uma engenhoca mágica que me permitisse apagar um ano, seria 2017 sem pensar duas vezes. No meio das várias perdas, fracassos e derrotas, nada me ocorre que possa, num futuro próximo ou longínquo, justificar uma reapreciação destes doze meses. E no entanto, há aqui um paradoxo evidente. Para todos os efeitos, 2015 e 2016, com todas as suas dúvidas e segundas oportunidades, deveriam merecer uma pior avaliação. Nada do que aconteceu ou se comprovou no ano passado resultou de falhanços cometidos no ano passado. Quando tive influência, foi por acções e inacções nos anos anteriores e cujas consequências eu percebi, previ e senti no momento. 2017 deveria ter sido um ano de pacíficas aceitações, 2015 e 2016 uma turbulenta memória de todas as restantes fases do modelo de Kubler-Ross.
Mas não é isso o que se passa. Sinto a falta de 2015 e dos seus talvezes que nunca o foram. E algo se passou em 2016, numa daquelas tardes de Primavera que já têm mais do Verão que há-de vir do que do Inverno que a precedeu. Sentado no meu canto habitual, a aguardar que o barco se separasse de Lisboa, senti... alívio. Um alívio que se tornou físico, como se alguém retirasse um universo dos meus ombros. Durante alguns minutos, todas as certezas e todas as dúvidas se calaram. A certa altura respirei fundo, fechei os olhos e sorri. Sorri um sorriso pintado de tristeza porque sabia, mesmo assim, que aquela viagem iria terminar dali a pouco e a realidade regrediria, como sempre o faz, para a média. Mas sorri também porque talvez... talvez. Naquela intersecção de espaço e tempo que eu ocupava e apenas eu ocupava, apesar de todas as razões que me convenciam do contrário... parecia possível. Talvez bastasse um passo. Talvez uma palavra chegasse. Talvez um gesto fosse suficiente. Talvez...
Eu não sabia, e não sei, e não saberei se aqueles momentos foram reais ou ilusórios, se resultado de um propósito ou de uma sequência de acasos. Sei é que, em 2016, revivi uma sensação dos meus 17 anos e que já esquecera: a sensação de possibilidade. E por isso estar-lhe-ei sempre grato.