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até que esgotem
No terminal dos barcos do Seixal, os sacos do lixo são substituídos diariamente. Sei-o porque vejo-o com frequência.
No terminal dos barcos do Seixal, os bancos devem ser limpos em dia de equinócio. Sei-o porque há já duas semanas (duas!) que um deles tem areia. Se eu fosse apostar, diria que muitos daqueles grãos nem sequer foram incomodados pela mais ligeira brisa.
Agora que passaram os quinze minutos de fama e o tropel de vozes e pés se dissipou da minha casa, gostaria de agradecer a todos os que aqui vieram e comentaram (e igualmente, já agora, aos que vieram e apenas leram). Graças aos comentários, pude também esclarecer uma dúvida que há muito me acompanhava e - genuinamente - expus no segundo parágrafo: não, não estamos sós neste mundo.
Já que estamos numa senda de agradecimentos, tenho a certeza de que Usain Bolt e José Mourinho gostariam de agradecer à equipa do Sapo pelo acréscimo de visibilidade que as suas notícias registaram ao estarem na mesma página que o meu texto.
Parque Eduardo VII, saída do topo, cerca das três da tarde de quarta-feira da semana passada: um cavalheiro sexagenário, de natureza na mão, entregava-se ao alívio mictório de encontro a uma árvore. (Nem sequer se tratava de uma árvore particularmente frondosa, nem em localização particularmente discreta).
Eu não sei se isto é um traço comportamental do lusitano, ou se é transversal às civilizações dessa Europa fora. Um cronista algarvio escreveu há anos que, pela sua experiência, o estrangeiro, quando soam as sirenes da bexiga, "aguenta-se" até chegar às instalações apropriadas, enquanto o português entra num pânico imediato. Estaria correcto, ou iludido por uma estatística pouco representativa?
Eu não sei. O que sei, porque vi, é que às três da tarde de um dia de Agosto, um cavalheiro, perante o alarme úrico, negligenciou uns WC públicos que distavam um minuto a pé, vários estabelecimentos de restauração com instalações disponíveis, um El Corte Inglés a menos de cinco minutos (já contando com o azar de todos os semáforos vermelhos), preferindo, indiferente aos gaiatos que jogavam à bola a umas dezenas de metros, aos transeuntes que passavam e aos automóveis que circulavam, soltar o regatozinho ali mesmo, em comunhão com as árvores e os passarinhos. Meses antes, vi outro cavalheiro libertar-se de encontro a uma esquina do Quartel de São Sebastião. Antes, outro que regava a parede atrás de um Mupi no Metro dos Anjos. E outros dois, porque onde urina um português urinam dois ou três, fizeram-no em acto comunitário num dos túneis de acesso à mesma estação. E com outro me deparei, há anos, que marcava a jante de uma pickup estacionada perto do Campo das Cebolas - às 17:45 de um dia de trabalho, indiferente às gentes que corriam para as estações dos barcos.
Ainda hoje questionei um inglês se esta urgência também grassa entre os súbditos de Sua Majestade. Ele não foi muito conclusivo, talvez por diplomacia de imigrante, mas mencionou a inexistência de uma rede alargada de WCs públicos. É verdade: nós não temos muitos lavabos públicos; temos, outrossim, muitos lavabos em locais públicos e ligados a actividades comerciais - e, por isso, às vezes sujeitos a um proteccionismo nem sempre irrazoável.
Mas bastará esta falta de instalações públicas para explicar a nossa pressa urinária? O cronista que supramencionei avançava outra explicação: a ditadura. O português, dizia, habituara-se a obedecer às figuras de autoridade: os sôtores, a Administração Pública, as forças militares e policiais. Portanto, quando a bexiga dava ordens, lá ia o português, rendido ao respeitinho, obedecer a sua senhoria.
Eu não concordo. E não concordo, desde logo, porque não acho o português obediente e respeitoso da ordem. Acho-o, pelo contrário, sonso como uma criança, dizendo que sim com a cabeça, de olhos baixos e mãos nos bolsos, mas fazendo o oposto quando ninguém está a ver e sente a mínima hipótese de impunidade. Na verdade, penso que a ditadura e subsequente democracia fizeram do lusitano uma criança rebelde: a urinadela fora do sítio funciona(va) como um acto de pequenina vingança contra o regrismo institucionalizado. A mijinha portuguesa transformou-se, assim, em tomada de posição.
Talvez o senhor de quarta-feira se descontraísse contra a árvore como censura à frequência com que os WCs do Parque são utilizados para necessidades físicas e não fisiológicas, à proliferação de grandes conglomerados comerciais que asfixiam o micro-comércio local, e como crítica a uma indústria de restauração que tarda a reflectir nos preços a baixa do respectivo IVA. O outro, desafogando-se na parede do quartel, insurgia-se contra toda a instituição militar. Os outros, no Metro, criticavam a falta de uma verdadeira política integrada de transportes públicos. E o outro, ao oxidar o pneu da pickup, apontava um dedo (e não só) acusador a uma sociedade condicionada para a ostentação.
Adenda (12:29 22/08/2016): um pequeno texto de agradecimentos.