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até que esgotem
Stevie Wayne: Get inside and lock your doors. Close your windows. There's something in the fog!
O meu avô, quando ouvia a minha avó a cantar, costumava dizer no gozo: "Hoje vai chover, há gaivotas em terra".
Até ontem, eu não sabia (nem sequer tivera curiosidade de o saber!) se o meu cartão multibanco era contactless.
Há semanas, um alfarrabista juntou ao seu catálogo este livro: 307 páginas, lê-se na descrição técnica. Pouco mais de trezentas páginas, pelos vistos, bastaram para Hans Hass escrever um tratado científico sobre os mistérios do comportamento do homem. Já se ele tentasse o mesmo para a mulher, "Mulher: os mistérios do seu comportamento", só o conseguiria com uma espécie de livro de areia borgesiano: um enigma com páginas infinitas, onde nenhuma é a primeira e nenhuma é a última, e nunca se consegue encontrar duas vezes a mesma página.
- Sabe o que você é? - disse Kathy. - Uma pessoa muito boa. Compreende isso?
Ele encolheu os ombros. Como a maior parte das verdades, era uma questão de opinião.
Philip K. Dick, Vazio Infinito
Pouco a pouco, ela envolvera-se ao longo dos anos numa situação de que não conseguia afastar-se. E ele agora não via nenhuma saída para ela; tinha-se prolongado por muito tempo. A fórmula tornara-se fixa.
Philip K. Dick, Vazio Infinito
Vagueou com dificuldade pelo quarto, examinando um livro aqui, uma cassete, um micromagneto. Ela até tinha um brinquedo que falava. "Era como uma criança", pensou, "realmente não é uma pessoa adulta."
Curioso, ligou o brinquedo falante.
- Olá! - exclamou ele. - Sou Charley Alegre e estou nitidamente sintonizado no seu comprimento de onda.
- Ninguém com o nome de Charley Alegre esté sintonizado no meu comprimento de onda - disse Jason.
Philip K. Dick, Vazio Infinito
Há semanas, durante uma daquelas conversas que nunca sabemos onde começam nem onde irão acabar, fiz alguns aforismos sobre a... como dizer... extrema rarefacção da minha vida sentimental. O meu interlocutor comentou então, à laia de consolo, algo como "foi pena, talvez tenha conhecido a mulher certa na altura errada". Que sim, talvez isso tenha acontecido, respondi-lhe, e se assim foi, significa que sou muito coerente: também conheci todas as mulheres erradas na altura errada.
Mas admito que não fui sincero naquele dia - pois cada vez mais percebo que, qualquer que tivesse sido a altura, teria sido a certa.
A tradução automática do Facebook bem que se esforça, mas parece que ninguém lhe incutiu a sensatez de saber quando parar.
Escondida no meio dos dramas da bola, das tragédias da chuva e das farsas da política, passou-me despercebida a notícia da morte de Angelo Badalamenti, um compositor com visibilidade algo discreta mas que será recordado como um dos grandes.
Quando digo haver nela um certo je ne sais quoi, não pretendo - de todo! - dizer que havia nela um certo não sei quê.
Angela Landbury em The Company of Wolves
Um colega de escola costumava dizer-me que se alguma vez se cruzasse com Jessica Fletcher, a protagonista de "Crime, Disse Ela", fugiria como do Diabo porque as pessoas tendiam a morrer como moscas à sua volta.
O Sapo faz um resumo da longa carreira de Angela Lansbury, exercício sempre algo ingrato pela necessidade de condensar 80 anos em dois ou três ecrãs de texto (o limite de atenção do internauta-padrão), mas parece-me injusto não haver nem uma menção a um adorável filmezinho de culto de 1984 chamado The Company of Wolves. Na cultura popular, Angela Lansbury será sempre Jessica Fletcher. Eu, quando penso nela, é primeiro como aquela avozinha cheia de superstições licantrópicas.
A miúda gira no stand da Fundação EDP, quando a abordei para lhe pedir o nº 5 da Electra, fez-me um sorriso tão aberto que só posso deduzir que recebe uma comissão das vendas - ou então, que tem passado ali dias entediantes. Ou isso, ou foram os meus olhos verdes que a deslumbraram (são castanhos), ou a minha farta melena loura que a entusiasmou (qual loura? qual melena? qual...?), ou a minha estampa atlética que a despertou (atleta do teclado e do Notepad++).
Decididamente, foi a comissão.
Por vicissitudes várias, há pelo menos uma dúzia de textos que, nos meus anos de blogosfera, já fiz e refiz inúmeras vezes na minha cabeça sem que uma única letra tenha sido (ainda) colocada no papel ou no computador. Um deles seria sobre Vangelis, que morreu na terça-feira. Não foi raro ouvir manifestações de estranheza pela minha admiração por ele. Que não reduzam a sua obra à "banda sonora do Guterres", foi o que sempre respondi aos sarcásticos, ou às bandas-sonoras de Blade Runner e Chariots of Fire, foi o que sempre respondi aos benévolos: a discografia de Vangelis pré-Colombo foi de contínua experimentação onde se ouve o rock progressivo dos Aphrodite's Child, o jazz, a música clássica, o minimalismo, o avant-garde, o pop e até algum rock mais eléctrico.
Hoje de manhã acordei sem água canalizada (todo o bairro está sem ela).
Também hoje de manhã morreu a última cria de uma ninhada de canários dos meus pais.
Depois digam-me que não há bruxas.